Não acreditando em profecias, astrologias, e tudo o que possa condicionar a rica natureza humana e o seu pensamento, ainda que respeitando quem em termos intelectuais a elas se dedique, o presente escrito tem meramente a intenção de a partir dos acontecimentos produzidos no ano transacto, em termos de exercício intelectual projectar no futuro o que se vai tornando presente.
Em 2003 o único acontecimento que parecia importar era a guerra do Iraque com as suas sangrentas consequências. Confirmou-se o nosso prognóstico de um Vietname árabe com guerilha urbana e ataques terroristas. Sem embargo, e enquanto o mundo se encontrava distraído pelos acontecimentos do Iraque, importantes mudanças ralizavam-se em muitas outras partes.
A integração europeia viveu um dos seus piores anos. O valor do dólar americano em relação ao euro sofreu a maior desvalorização. Facassaram as intenções de reviver o acordo global de comércio. A democracia russa converte-se mais em aparência do que em realidade.
Ainda que alguns desses acontecimentos tenham sido estimulados pela guerra do Iraque, a maioria deles constituem manisfestações de tendências preexistentes desde há muito, e que chegaram ao seu ponto de exaltação em 2003. Terão grande importância e repercussões em no decorrer deste ano.
A Europa
Neste ano de 2004, por exemplo, a Europa enfrentará a fragmentação e a integração. Continuará a sofrer os efeitos das bombas de fragmentação política e económica que explodiram no seu seio em 2003, como as azedas disputas por conta do tema do Iraque e o colapso do Pacto de Estabilidade e Crescimento por parte da Alemanha e da França. Sem embargo, a Europa continuará a sua marcha para a integração.
Um projecto de constituição foi apresentado formalmente em 20 de Julho, no Conselho Europeu de Salónica, na Grécia, e debatido activamente enquanto continuavam os preparativos para o ingresso na União Europeia dos 10 novos países no dia 1 de Maio, com o qual o número de países da União subirá para 25. Pela mesma época, sete países ex-comunistas entrarão para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Um dos seus compromissos ao fazê-lo será o de dispender no mínimo 2% do seu Produto Interno Bruto (PIB) na defesa.
Ironicamente, ao mesmo tempo que se produziu um desdobrar de actividade em apoio da integração política e económica, o ano de 2003 será talvez recordado como um dos piores ou talvez o pior para o projecto europeu .
Foi o ano em que a Europa não só ficou profudamente fracturada pelas divergências acerca da guerra do Iraque, mas também sobre a decisão da França e da Alemanha de romper o acordo conseguido no Conselho Europeu de Amesterdão em Junho de 1997 por todos os membros da União Europeia como suporte do lançamento de uma moeda comum, que foi o Pacto de Estabilidade e Crescimento, como acima nos referimos.
A Alemanha e a França simplesmente negaram-se a respeitar as regras do pacto e reduzir os seu défice público, fixado em 3% do PIB, pagando caso contrário elevadas multas conforme prescritas no texto do pacto quando os firmantes excedessem os limites das variáveis económicas.
O PIB da Alemanha contraiu-se em 0,1% no ano passado, o que supõe a primeira redução anual registada, pela primeira economia da zona do euro desde há 10 anos, segundo os dados apresentados pelo Departamento Federal de Estatísticas (Destatis).
O dado é uma má notícia para o Governo do Chanceler alemão, Gerhard Schröder, que confiava que a sua economia registaria no pior dos casos, um crescimento zero. No ano de 2002 a Alemanha cresceu 0,2%.
Para além desse dado, a Destatis deu também a conhecer o défice público alemão que alcançou em 2003 que foi de 4% e, pelo segundo ano consecutivo, supera os límites permitidos pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento da zona euro, com temos vindo a dizer.
O dado conhecido no dia 15 de Janeiro não constitui nenhuma surpresa para o executivo alemão que prevê que este ano o défice público supere de novo o límite de 3%. En 2002, o défice foi de 3,5% do PIB.
Num comunicado difundido depois de que o Destatis aoresentara as cifras oficiais, o Ministério da Economia e Trabalho assinalou que na primeira metade de 2003 a Alemanha viu-se afectada pela insegurança económica criada pela guerra do Iraque, afirmando que "adiaram-se as exportações e investimentos e moderou-se o consumo. As empresas e os consumidores só mudaram o seu comportamento de forma vagarosa. Na segunda metade de 2003 acumularam-se os sinais de uma mudança conjuntural".
O Ministro da Economia e Trabalho, Wolfgang Clement, assinalou que "a necessidade de melhora que tem surgido e o abaixamento da carga fiscal às empresas e consumidores dão esperança para que se produza uma mudança na actividade investidora e no consumo", e acrescentou, ainda que "os indicadores nacionais e internacionais actuais mostram cada vez mais uma consolidação da evolução económica", e precisou que "o PIB alemão voltou a crescer, devagar mas de forma segura, desde a última metade do ano passado".
A ligeira reactivação na segunda metade do ano deveu-se em boa parte ao começo do crescimento da economia mundial, especialmente dos Estados Unidos e Ásia. Pese esse facto, a procura interna só aumentou 0,1%, os investimentos fixos diminuiram em 3,3% e o consumo privado retrocedeu em 0,2%.
Esta última debilidade deveu-se, segundo a análise de Clement, não só das inseguranças da conjuntura económica mundial, mas também da díficil situação no mercado de trabalho, o escasso aumento dos salários reais e o aumento das cotizações na Alemanha.
Por sua vez, o Banco de França deu como sendo de 4,2% o défice público, prevendo que para este ano seja de 3,7%; reviu a súbida numa décima (até 0,6%) as suas previsões de crescimento económico do último semestre de 2003 e em três décimas (até 0,7%) as do primeiro trimestre deste ano.
Sem embargo, as estimativas mensais do Banço de França, o crescimento médio da França em 2003, foi corrigido em uma décima para ficar em 0,1%, depois das modificações levadas a cabo nos seus cálculos pelo Instituto Nacional de Estatísticas (INSEE).
As cifras apresentadas pela entidade emissora estimam, que com a progressão económica que se irá conseguir no primeiro trimestre, ainda que no restante do ano houvesse uma estagnação, a subida final para o conjunto deste ano seria de 1,2%.
O Banco de França baseia as suas previsões na sondagem mensal da conjuntura na indústria, que mostra que o clima dos negócios subiu dois pontos, para 101 pontos, perante os 99 que se haviam registado em Novembro e Dezembro de 2003.
O INSEE considerava na sua última edição do estudo trimestral da conjuntura que o segundo trimestre do exercício se produziria um crescimento de 0,5%, que garantiria 1,7% se no segundo semestre houvesse uma evolução nula da economia.
Ainda que o sonho da integração continue alimentando um projecto que já está firmemente protegido em importantes realidades tais como a moeda única, as tensões de 2003 têm sido importantes e os seus efeitos não se desvanecerão com facilidade. As bombas de fragmentação política que explodiram na Europa no ano passado, dificultarão a construção de uma Europa unida este ano e talvez para além, e inclusive poderão gerar alguns retrocessos.
Acreditamos no velho lema de que a União Europeia tem sabido vencer todas as crises e avançar mais rapidamente no meio delas. Esperemos que assim seja e se transforme em princípio impulsionador. Como sabemos 2003 foi um ano crucial para a Europa ainda que não tenha sido para melhor.
O Euro
Para complicar a situação, neste ano os debates, referendos e negociações relacionados com a construção de uma Europa unida estarão invariavelmente condicionados pela dificuldade das condições económicas.
Um euro forte, não fará mais que debilitar adicionalmente uma Europa que já se encontra numa frágil situação económica. Durante mais de una década os especialistas predisseram que o dólar americano enfraqueceria como consequência dos insustentáveis défices comerciais dos Estados Unidos.
Tal situação ocorreu com maior vigor nos começos deste ano. Enquanto a guerra assolava o Iraque, o valor do euro em relação ao dólar aumentou fortemente. Nos finais do ano transacto já tinha alcançado o seu ponto mais elevado nos seus cinco anos de circulação. "Os exportadores europeus estão debaixo de intensa pressão pela paridade da moeda conforme afirmou dia 30 de Dezembro o Financial Times.
A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), uma organização formada pelos países mais ricos, advirtiu que a desvalorização do dólar americano poderia asfixiar a dificultosa recuperação económica europeia, em momentos, em que os resultados das empresas pareciam frágeis e os investimentos chegam em quantias limitadas. A indústria europeia, os empregos e o crescimento económico ver-se-ão submetidos a pressões sem precedentes.
Ainda que não seja a primeira vez que as moedas europeias se tenham revalorizado mais do que convém aos seus países emissores, é a primeira vez que uma revalorização excessiva afecta uma Europa de moeda única e com um único banco central.
Também é a primeira vez que as empresas europeias têm que sofrer os efeitos negativos de um euro demasiado custoso e vêm diminuindo a sua capacidade de competir, ao mesmo tempo que enfrentam empresas chinesas e americanas que se mostram mais competitivas e agressivas que nunca.
As empresas chinesas pagam salários muito mais baixos e as americanas têm diminuído ao mínimo a sua relação nominal de pessoas, incrementando por sua vez a produtividade dos seus trabalhadores a um ritmo espectacular (mais de 8% só em 2003).
Tanto que, as operações manufactureiras de outsourcing e offshoring (relocalização) a favor da China ou a subcontratação de serviços na Índia constituem um tema de conversação praticamente quotidiano dentro das empresas americanas. Esta matéria, não pode sequer ser mencionado na maioria das suas competidoras europeias, uma vez que as limitações legais e a acção de poderosos sindicatos complicam com frequência as subcontratações no estrangeiro ao ponto de torná-las impossível.
Talvez o perigo mais grave que surge de um euro forte, é que ao dificultar o trabalho dos exportadores europeus e embaratecer os produtos estrangeiros, o euro revalorizado de 2003, fomente as tendências proteccionistas da Europa, o que geraria ainda mais problemas para o falhar de um sistema de comércio global, o qual já recebeu um severo golpe no ano passado.
O Comércio Global
No início do ano de 2003 o governo do Presidente Bush impôs tarifas especiais sobre as importações de aço, decisão que mais tarde teve que reconsiderar quando os europeus e outros países começaram a impor medidas retaliatórias destinadas a afectar aqueles Estados cujos votos necesita Bush para ganhar as eleições de 2004 e quando resultou demasiado óbvio que a manutenção dessas tarifas infligiam um golpe devastador à Organização Mundial de Comércio.
Sem embargo, a questão não se limitava ao aço. Os Estados Unidos também começaram a impor restricções às importações de têxteis procedentes da China e está-se agarrando fortemente aos subsídios agrícolas que adoptou no ano de 2002. Num recente encontro, o ex-Presidente Bill Clinton expressou a sua frustração perante o facto de que, contrariamente às posições políticas que vieram a ser tão comuns no seu partido durante os anos 90, os candidatos à nomeação presidencial do Partido Democrático não são muito favoráveis aos acordos de livre comércio ou são abertamente hostis aos mesmos. Em Washington as preocupações acerca do crescente proteccionismo global têm sido muito comuns.
Recentemente Alan Greenspan, Presidente da Reserva Federal, fez uma alocução acerca da saúde da economia americana e disse que "o proteccionismo sigiloso" e a "possibilidade de guerras comerciais" constituem ameaças muito mais graves contra a economia do seu país que os défices, os quais considera que são ainda manejáveis.
A questão é que apesar destes terríveis sucessos em matéria de actividades proteccionistas, os Estados Unidos é ainda uma das economias mais abertas do mundo. A Europa, o Japão e especialmente alguns países em desenvolvimento como a Índia ou o Brasil são muito mais proteccionistas que os Estados Unidos, que se tornou evidente com o completo fracasso das negociações de comércio celebradas em Cancún, no México, em Setembro de 2003. Os Ministros de Comércio Externo de todo o mundo encontraram-se nesse local, com o fim de acordar a forma de por a funcionar algumas iniciativas que facilitem o comércio, e que tinham sido esboçadas durante a Cimeira da Organização Mundial de Comércio em Doha, Qatar.
Os ressentimentos e as amargas acusações entre a Europa, os Estados Unidos e os países em desenvolvimento, acerca de quem era o responsável pela ruptura das negociações de Cancún terão inevitavelmente repercussões este ano e para o futuro. Este ano será, provavelmente, um ano tão difícil como o que passou quanto a conseguir progressos na liberalização do comércio e nas regras de investimentos.
Nos Estados Unidos a campanha eleitoral estará em pleno desenvolvimento e reinará a ansiedade em matéria de postos de trabalho perdidos devido ao comércio internacional e à relocalização da produção. Na Europa, o impacto de um euro que está a debilitar as exportações converterá em suícidio político qualquer exposição acerca de concessões comerciais que possam beneficiar os exportadores americanos ou chineses.
A Rússia
No ano passado a actividade política converteu-se num jogo ainda mais perigoso na Rússia, e durante este ano o perigo não diminuirá. Enquanto que o Presidente Bush se preocupava com Saddam Hussein, o Presidente russo Vladimir Putin preocupava-se com Mikhail Khordokovsky, o homem mais rico da Rússia, e que finalmente Putin conseguiu prender. É um erro desestimar o caso Khordorkovsky, relegando-o para o nível de um episódio mais, dentro da estranha trajectória da Rússia pós-comunista.
O facto é que, em 2003, a Rússia não evoluiu para um sistema mais consolidado e funcional de controles e equilíbrios que pudessem assegurar a saúde de uma democracia. Pelo contrário, têm-se afastado decididamente desse sistema. Na Rússia de hoje nenhuma estação de televisão é independente do governo. Em toda a Rússia os cargos de maior poder estão concentrados de maneira desproporcionada, nas mãos dos silovicky, antigos membros da polícia secreta, dos servicios de segurança, das forças militares ou da antiga KGB.
Segunda Olga Kryshtanovskaya, uma respeitada socióloga russa que se especializou no rastreamento dos silovicky e a segui-los nas suas carreiras, 25% de todos os funcionários governamentais de Moscovo estão actualmente vinculados aos serviços de segurança. Nas províncias, ela estima que a proporção alcança os 70%.
Sem embargo não é só a omnipresença dos silovicky o que distorce o adequado funcionamento da democracia na Rússia. É também a enorme influência de individúos ricos que se converteram em políticos ou funcionários governamentais. Nas recentes eleições para a Duma (Parlamento russo), 28% dos candidatos de um dos partidos concorrentes eram milionários. Não se tratava do partido de direita. Os milionários em questão eram candidatos do Partido Comunista.
Conclusão
Este ano será um ano de mais surpresas. Ainda que, a situação do Iraque continue a concentrar a atenção do mundo e o comportamento dos Estados Unidos, será motivo para intermináveis escritos e discursos, muitas outras tendências importantes cuja as análises têm sido nubladas pelas obsessões do passado ano, passarão a surpreendernos no decorrer deste ano. Os quatro aspectos dos quais temos vindo a abordar no presente escrito não foram os únicos cuja importância foi ofoscuda pelo Iraque.
A transformação da Al Qaeda, que passou a ser uma organização de implantação global; o surgimento económico da China e a perda do impulso económico da América Latina; a popularização do suicídio como arma predilecta dos terroristas foram outras tendências importantes que adquiriram grande força no passado ano e que darão forma ao presente ano. Apenas comentámos só quatro delas, mas existem mais que abordaremos em ulteriores escritos.