Introdução
O que é que faz um povo miserável, indígena, sem possuir uma saída para o mar, cheio de analfabetos levantar-se e fazer uma verdadeira convulsão social, conseguindo atingir o maior objectivo maior que foi renúncia do seu presidente e do seu modelo económico? Talvez tenhamos dado de começo a resposta... A miséria a que está submetida a esmagadora maioria da população boliviana, chegou a níveis tão alarmante que várias organizações internacionais de direitos humanos já previam um colapso no país. Mas, surpreendendo tudo e todos, o colapso veio sob s forma de protesto, de grandes manifestações, de desobediência civil e de mortes, muitas mortes.
Quando a imprensa mundial começou a noticiar o que se passava no país, o processo já tinha sido deflagrado há vários meses... A negativa dos sectores organizados da sociedade diante não apenas da questão da exportação do gás, mas do modelo económico imposto por uma pequena minoria de bolivianos, comprometidos com os interesses dos grandes organismos financeiros internacionais.
A luta teria de acontecer... Pelo que nos foi dado presenciar através dos meios televisivos, começava uma revolta popular comparável às manifestações na Argentina, há um ano atrás. Mas ao contrário dos argentinos, os bolivianos obtiveram sucesso...
Início
As manifestações espontâneas do povo boliviano contra a situação no país tiveram início no dia 21 de Setembro passado. A rebelião foi originada como um protesto contra a venda de gás aos Estados Unidos, em que, operários e camponeses exigiam o fim do neoliberalismo, o derrube do capitalismo e a renúncia do Presidente Sánchez de Losada. O Presidente contava com apenas 9% de apoio popular. De orientação neoliberal, venceu por pequena margem o líder dos plantadores de cocaína Evo Morales e do Movimento ao Socialismo (MAS), nas últimas eleições, tendo sido reeleito com o apoio ostensivo dos Estados Unidos. Não conseguiu cumprir as suas promessas e cada dia que passava, o seu governo era menos aceite pela população pobre do país. O planalto boliviano esteve bloqueado pelos manifestantes, e foi proclamada uma greve geral, que teve início no dia 29 de Setembro.
A origem dos protestos referidos, dá-se por causa de um projecto de exportação de gás para os Estados Unidos que foi instigado por um consórcio multinacional. Este projecto traria a esse consórcio 1 bilião e 300 milhões de dólares americanos, e o Estado boliviano arrecadaria apenas entre 40 a 70 milhões de dólares americanos em impostos e royalties. Tudo como resultado da privatização da indústria petrolífera decretada por governos neoliberais que se sucederam na Bolívia desde 1985, mas foi o Presidente Sánchez de Lozada quem transferiu a propriedade do gás para as multinacionais, em 4 de Agosto de 1997. Isto é, dois dias antes do termo do seu primeiro mandato presidencial, através de um decreto secreto e que foi considerado ilegal pelo Tribunal Constitucional.
As multinacionais que operam na Bolívia apoderaram-se das reservas de gás do país, que se estimam em 52 triliões de pés cúbicos, a segunda mais importante da América do Sul e avaliada actualmente em pelo menos 80 biliões de dólares americanos.
Os protestos na Bolívia contra a privatização dos recursos naturais e que pediam a renuncia do Presidente Sanchez Losada, continuaram e intensificaram-se. A greve geral decretada não foi interrompida, e mobilizações constantes em várias cidades do país cresceram cada vez mais. Os bloqueios das estradas e das ruas também foram intensos, sendo violentamente reprimidos pela polícia e pelo exército. No dia 11 de Outubro os manifestantes conseguiram isolar La Paz, que ficou sem combustível e com todas as estradas de acesso bloqueadas.
Nos confrontos, até esse dia tinha morrido pelo menos quatro trabalhadores e também uma criança de 5 anos. A resistência intensificou-se com a adesão dos plantadores de cocaína de Chapare aos protestos. A ideia que presidia à manifestação era a de um golpe de Estado armado por políticos e militares.
Os manifestantes, com dissemos, alegam que com a privatização, a maior parte dos dividendos da venda do gás fica para as multinacionais e não com o povo boliviano. Mas os protestos tiveram como alvo principalmente o facto escandaloso do gás boliviano estar a ser vendido por menos da metade do seu preço no mercado internacional. Enquanto o preço do mercado do gás na região está entre US$ 1,30 e US$ 1,70 o milhar de pés cúbicos, as multinacionais estão a pagar apenas US$ 0,70. Estima-se em 3,6 biliões de dólares americanos, o prejuízo sofrido pelo povo boliviano em apenas dez anos.
A 14 de Outubro depois de afirmar que as recentes manifestações na Bolívia seriam de pouca importância e rejeitar a renuncia, o Presidente Sanchez de Lozada, chamado de Goni pela população revoltosa, estava no momento mais difícil do seu mandato. Apesar de ter voltado atrás, e denunciado o acordo para a venda do gás natural, cerca de 30 mil pessoas foram para as ruas de La Paz gritar "Goni, assassino, queremos a tua cabeça".
As pessoas saíram em protesto, principalmente, contra a violenta repressão do dia 11 e 12 de Outubro. Apesar da ordem ter sido dada para controlar a situação por meio da metralhadora e da bala, alguns polícias recusaram-se a disparar.
Os mortos feitos pela polícia e exército bolivianos contavam-se até aquela data em 57 pessoas, desde que este conflito começou, em 21 de Setembro. Mas desde o início do governo de Goni eram de 107 as vítimas da repressão.
Renúncia
A 17 de Outubro, o Presidente Gonzalo Sánches de Lozada renuncia, por meio de uma carta dirigida ao Congresso. O Congresso aceitou a renuncia, por 84 votos a favor e 26 contra. A leitura da carta de renúncia foi interrompida várias vezes pelos gritos de "assassino" por parte dos parlamentares da oposição. Sánchez de Lozada disse que a "Bolívia vive horas cruciais" e que a sua democracia "está sob o assédio de grupos corporativos, políticos e sindicais que não acreditam nela". Quem assumiu a presidência foi o vice-presidente Carlos Mesa.
A decisão de exportar o gás boliviano - a maior riqueza do país - para os Estados Unidos, a preços irrisórios, através de um porto chileno, fez com que os trabalhadores, indígenas e camponeses se unissem e lutassem pela renuncia de Sánches de Lozada. Este é dono de um dos maiores grupos mineiros da Bolívia. Enquanto presidente, de 1992 a 1997, pôs em prática um extenso programa de privatizações. A dois dias do termo do seu mandato, publicou um decreto autorizando a privatização da exploração, do transporte e da comercialização do gás boliviano. O beneficiário foi o consórcio Pacific LNG, composto pelas transnacionais British Gas (BG), British Petroleum (BP) e Repsol/YPF. Para cada dólar americano entregue ao Estado boliviano, por conta de impostos e regalias pela concessão da exploração de fontes de energia, o consórcio ganharia 24 dólares americanos, caso o projecto fosse concretizado. As multinacionais pretendiam facturar em 20 anos, 27 biliões de dólares americanos, pagando de impostos algo que oscilava entre 40 a 70 milhões de dólares americanos.
Dois terços da população da Bolívia vivem abaixo do nível de pobreza; o país sofre com a recessão desde a década de 80. O povo também repudia a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e exige a punição dos responsáveis pelas mortes ocorridas nos conflitos.
De acordo com as organizações de defesa dos direitos humanos, os conflitos entre o exército e os populares causaram a morte de mais de 80 pessoas num mês.
Sánches de Lozada tinha perdido o apoio do vice-presidente, e novo Presidente Carlos Mesa e do Ministro do Desenvolvimento, Jorge Torres Obleas, que tinha renunciado ao cargo.
O gás a ser enviado à Califórnia, a um preço muito baixo, como temos vindo a referir, por troca de pequenas regalias, através de terras chilenas que em noutros tempos tinham sido bolivianas. A saída do gás através de um porto do Chile colocou o sal na ferida, num país que desde há mais de um século vem exigindo, em vão, a recuperação do caminho até o mar que perdeu em 1883, na guerra ganha pelo Chile.
Mas a rota do gás não foi o motivo mais importante da fúria que ardeu por todas as partes. Outra fonte essencial foi a indignação popular, que o governo respondeu pela bala, como é costume, regando de mortos as ruas e os caminhos. O povo levantou-se porque negou aceitar que ocorra com o gás o que antes ocorreu com a prata, o salitre, o estanho e todas as outras riquezas. A memória dói e ensina: os recursos não renováveis vão sem dizer adeus, e jamais regressam.
História
Em 1870, um diplomata inglês sofreu na Bolívia um desagradável incidente. O ditador Mariano Melgarejo ofereceu-lhe um copo de chica, a bebida nacional feita de milho fermentado, e o diplomata agradeceu mas disse que preferia chocolate. Melgarejo, com a sua habitual delicadeza, obrigou-o a beber uma enorme vasilha cheia de chocolate e depois passeou com ele num burro, montado ao contrário, pelas ruas da cidade de La Paz. Quando a rainha Vitória, em Londres, ficou a saber do assunto, mandou trazer um mapa, riscou o país com uma cruz de giz e sentenciou: "A Bolívia não existe".
Será que se passou dessa forma? Pode ser que sim, pode ser que não. Mas essa frase, atribuída à arrogância imperial, pode ser lida também como uma involuntária síntese da atormentada história do povo boliviano. A tragédia repete-se, girando como um carrossel; desde há cinco séculos, a fabulosa riqueza da Bolívia maldiz os bolivianos, que são os pobres mais pobres da América do Sul. "A Bolívia não existe": não existe para seus filhos.
Na época colonial, a prata de Potosí foi, durante mais de dois séculos, o principal sustento do desenvolvimento capitalista da Europa. "Vale um Potosí", dizia-se, para elogiar o que não tinha preço. Em meados do século XVI, a cidade mais povoada, mais cara e que mais esbanjava no mundo nasceu e cresceu ao pé da montanha que jorrava prata. Essa montanha, o chamado Cerro Rico, devorava índios. "Os caminhos estavam cobertos, que parecia que se mudava o reino", escreveu um rico mineiro de Potosí: as comunidades esvaziavam-se de homens, e de todas as partes marchavam prisioneiros, rumo à boca que conduzia aos buracos escavados. Do lado de fora, as temperaturas de gelo. Do lado de dentro, o inferno. De cada dez que entravam, somente três saíam vivos. Mas os condenados à mina, que pouco duravam, geravam a fortuna dos banqueiros flamengos, genoveses e alemães, credores da coroa espanhola, e eram esses índios que tornavam possível a acumulação de capitais que converteu a Europa no que a Europa é. O que ficou na Bolívia, de tudo isso? Uma montanha oca, uma incontável quantidade de índios assassinados por extenuação e uns quantos palácios habitados por fantasmas.
No século XIX, quando a Bolívia foi derrotada na chamada Guerra do Pacífico, não só perdeu a sua saída para o mar e ficou encurralada no coração da América do Sul. Também perdeu o seu salitre. A história oficial, que é história militar, conta que o Chile ganhou essa guerra; mas a história real comprova que o vencedor foi o empresário britânico John Thomas North. Sem disparar um tiro nem gastar um centavo, North conquistou os territórios que haviam sido da Bolívia e do Peru e converteu-se no rei do salitre, que era então o fertilizante imprescindível para alimentar as cansadas terras da Europa.
No século XX, a Bolívia foi o principal abastecedor de estanho do mercado internacional. As embalagens de folha-de-flandres, que deram fama a Andy Warhol, provinham das minas que produziam estanho e viúvas. Na profundidade dos buracos escavados, o implacável pó de salitre matava por asfixia. Os pulmões dos trabalhadores apodreciam para que o mundo pudesse consumir estanho barato. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Bolívia contribuiu para a causa dos aliados vendendo o seu minério a um preço dez vezes mais baixo que o preço usual. Os salários dos trabalhadores reduziu-se a pouco mais que nada, houve uma greve, as metralhadoras dispararam fogo. Simón Patiño, dono do negócio e do país, não teve que pagar indemnizações, porque a matança por metralhadora não era acidente de trabalho.
Então, Dom Simón pagava cinquenta dólares anuais de imposto de renda, mas pagava muito mais ao Presidente da República e a todo o seu gabinete. Ele tinha sido um morto de fome tocado pela varinha mágica da deusa Fortuna. As suas netas e netos ingressaram na nobreza europeia. Casaram-se com condes, marqueses e parentes de reis. Quando a revolução de 1952 destronou Patiño e nacionalizou o estanho, era pouco o minério que restava. Não mais que os restos de meio século de desaforada exploração ao serviço do mercado mundial.
Há mais de cem anos, o historiador Gabriel René Moreno descobriu que o povo boliviano era "celularmente incapaz". Ele tinha posto na balança o cérebro indígena e o cérebro mestiço, e comprovado que pesavam entre cinco, sete e dez onças menos que o cérebro de raça branca.
Passou o tempo, e o país que não existe segue doente de racismo. Mas o país que quer existir, onde a maioria indígena não tem vergonha de ser o que é, não cospe no espelho. Essa Bolívia, farta de viver em função do progresso alheio, é um país de verdade. A sua história, ignorada, abunda de derrotas e traições, mas também em milagres que são capazes de fazer os desprezados quando deixam de desprezar-se a si mesmos e quando deixam de lutar entre eles. Feitos assombrosos, de muito génio, estão a ocorrerem, sem ter de ir muito longe, nos tempos que correm.
Em 2000, um caso único no mundo: o povo desprivatizou a água. A chamada "guerra da água" ocorreu em Cochabamba. Os camponeses marcharam desde os vales e bloquearam a cidade, e também a cidade revoltou-se. Responderam com balas e gases, o governo decretou o estado de sítio. Mas a rebelião colectiva continuou, impossível de ser controlada, até que na investida final a água foi arrancada das mãos da empresa Bechtel e o povo recuperou a rega dos seus corpos e das suas plantações. A empresa Bechtel, com sede na Califórnia, recebe agora a consolação do Presidente Bush, que lhe dá de presente contratos milionários no Iraque.
Há alguns meses, outra explosão popular, em toda a Bolívia, venceu nada menos que o Fundo Monetário Internacional. O Fundo vendeu cara a sua derrota, com mais de trinta pessoas assassinadas pelas chamadas forças da ordem, mas o povo cumpriu a sua façanha. O governo não teve outro remédio a não ser anular o imposto aos salários, que o Fundo tinha mandado aplicar. Há povos de povos.
Agora, foi a guerra do gás. A Bolívia contém enormes reservas de gás natural. Sánchez de Lozada havia chamado capitalização à sua privatização mal dissimulada, mas o país que quer existir acaba de demonstrar que não tem má memória. Outra vez a velha história da riqueza que se evapora em mãos alheias? "O gás é o nosso direito", proclamavam nas manifestações. O povo exigia e seguirá exigindo que o gás esteja ao serviço da Bolívia, em lugar de que a Bolívia se submeta, uma vez mais, à ditadura do seu subsolo. O direito à autodeterminação, que tanto se invoca e tão pouco se respeita, começa por aí.
A desobediência popular fez perder um grande negócio à Pacific LNG, integrada pela Repsol, British Gas e Panamerican Gas, que foi sócia da empresa Enron, famosa pelas suas más virtudes. Tudo indica que a empresa ficará com a vontade de ganhar, como esperava, dez dólares por cada dólar de investimento. Por sua parte, o fugitivo Sánchez de Lozada perdeu a presidência. Seguramente não perdeu o sonho. Sobre a sua consciência pesa o crime de mais de oitenta manifestantes mortos, mas esta não foi a sua primeira carnificina e este porta-bandeira da modernização não se atormenta por nada que não seja rentável. Ao fim e ao cabo, ele pensa e fala em inglês, mas não é o inglês de Shakespeare, é o de George Bush.
A alternativa
O atraso mostrado por Sánchez de Lozada no seu pedido de renúncia expressa esse sentimento de solidão em que se encontram as classes dominantes frente à ausência de uma alternativa sólida. A batalha do gás permitiu condensar um conjunto de reivindicações estruturais do povo que se encontravam latentes e que emergiam localmente e que agora tomaram forma nacional.
De facto, na guerra do gás existem vários componentes que provocaram o actual levantamento, combinam-se reivindicações de classe e reivindicações étnicas, produto da brutal opressão aos povos indígenas, locais e regionais. Deste ponto de vista e desde o salto na situação que significou o levantamento em El Alto, podemos dizer que uma revolução na Bolívia começou a caminhar, mesmo que não se tenha consumado a queda revolucionária do governo.
Nesses feitos tem-se dado uma aliança de classes entre os operários que está a actuar de forma diferenciada, pontualmente com os mineiros de Huanuni e outro contingente de mineiros que se encontra em La Paz, o movimento camponês do planalto e vales, plantadores de cocaína, os pobres dos centros urbanos e aprendizes, de fábricas, curtidoras, transportadores, mercados, etc... Finalmente os universitários também se juntaram ao lado do povo.
Diferente dos acontecimentos de Cochabamba em 2000, na "guerra da água", as actuais reclamações na cidade de El Alto foram claramente políticas como eram a anulação da lei dos hidrocarbonetos, o que implica a sua renacionalização, na industrialização do gás e em especial na renúncia de Sánchez de Lozada.
No que diz respeito às organizações que actuaram no movimento ao lado do povo foram principalmente as Juntas de Vizinhos, uma forma de organização muito comum no país. Em El Alto estiveram cerca de 500 juntas. Estas estão agrupadas nas FEJUVE (Federación de Juntas Vecinales) que em combinação com a Central Obrera Regional dirigiram a luta.
Actualmente, e produto da repressão a estas Juntas de Vizinhos, pelo menos nos sectores mais castigados pela repressão, as pessoas têm dado instruções para a formação de comités de autodefesa. Também surgiram nesta mesma cidade um Comando Geral Comunitário, formado pela coordenação entre a COR, FEJUVE e a CSUTCB (Confederación Sindical Unica de Trabajadores Campesinos de Bolivia), como uma instância de coordenação para resolver a questão da autodefesa.
Em 12 e 13 de Outubro, a resistência à selvajaria militar/policial deu-se de forma espontânea, sem organização prévia de nenhum tipo, o que evidencia o estado das organizações existentes.
Em geral o estado de ânimo do povo tende quotidianamente a esquecer a política quer a nível nacional, quer a nível local. De facto, alguns dirigentes tentaram dialogar com o governo e foram ignorados ou rapidamente disciplinados perante as ameaças de linchamento.
Sanchez de Lozada demorou a cair pelo apoio do conjunto de organismos internacionais, começando pela embaixada norte-americana, a Organização de Estados Americanos (OEA), o Pacto Andino e vários organismos internacionais que vêem a sua queda como "um perigo" para o conjunto da região, já que depois de 20 anos de democracia pactuada, excludente, racista e repressiva, o conjunto de mediações políticas burguesas tradicionais está fortemente questionado. Daí o apoio que lhe deram nas horas críticas o Movimiento de la Izquierda Revolucionaria e a Nueva Fuerza Republicana, assim como as associações empresariais, banqueiros, a igreja e todas as organizações patronais.
As classes médias altas, no decurso dos últimos dias estão a adoptar posições francamente fascistas, como o assassinato de um activista por meio de um jovem de 17 anos num bairro da classe média alta, ou as ameaças das lojas de Santa Cruz de la Sierra que chegam a disparar aos camponeses.
Não obstante Sanchez de Lozada ter levado tempo a cair pela estratégia dos dirigentes das organizações de camponeses como a cúpula do Movimiento Al Socialismo, do Movimiento Indigena Pahacuti e também da Central Obrera Boliviana (COS). A política que têm sustentado sistematicamente tem sido a de pressionar para "convencer" o governo, para que faça uma declaração sobre a quem pertencia o gás, se aos bolivianos ou às multinacionais. A seguir, quando o movimento de camponeses pediu no decurso das manifestações em 12 e 13 de Outubro em El Alto, pressionando e tentando "convencer" a que renuncie. A política conciliadora e timoneira evidencia-se nas suas convocações a realizar a "greve de fome" como mecanismo de conciliação, suspendendo os alargamentos da COB e restringindo ao máximo possível, nas actuais circunstâncias, a participação de vanguarda nos mesmos, sob o argumento de "questões de segurança", e finalmente tratando de diminuir a "acção directa" do movimento de camponeses.
O novo governo aposta em permanecer, desgastando a mobilização e se necessário apelar a uma repressão maior. De facto da quantidade de mortos e feridos das últimas semanas atestam isso, 160 mortos e mais de 400 feridos, assim como a intervenção de diversos meios de comunicação social e as ordens de detenção de sindicalistas e activistas. A mudança institucional preserva desta forma o conjunto de instituições e a legislação actual. Isto é uma tentativa de expropriar a grandiosa luta levada a cabo pelos trabalhadores do campo e da cidade, procurando mudar por algo imutável.
Conclusão
Dada toda a história sofredora do povo boliviano o mundo deverá mostrar toda a sua solidariedade, para que os bolivianos consigam definitivamente, estruturar-se num modelo social, económico, político e cultural que faça com que o seu país e o seu povo, saia da miséria a que estão submetidos.
Espera-se que as pessoas que irão assumir o poder na Bolívia, estejam realmente comprometidas com a mudança... E não falamos somente com a mudança de grupos dentro do poder. Falamos da mudança da mentalidade conservadora que na Bolívia e noutros países andinos atingem níveis lastimáveis. Como sabemos, ou não sabemos, os níveis de violência contra a mulher na Bolívia é um dos mais altos do mundo. A grande indústria da cocaína ali instalada escraviza jovens, agricultores e índios.
Acreditamos, que a possibilidade de mudança de atitude e mentalidade não passa somente pelo grupo que está no poder. É muito mais do que isso... é preciso um trabalho intenso daqueles que, de alguma forma, pensam diferente do status quo. Depositamos toda a esperança e que a luta desse grande povo boliviano não seja em vão. Aliás, não há lutas em vão!
Nós centenas de milhões de habitantes deste planeta por vezes temos de usar o direito à indignação, sem medo de represálias, lutando pelos direitos que nos pertencem e que são património da humanidade. A mais das vezes debaixo de uma fachada democrática esconde-se um Estado corroído.
É evidente que existem imensas complexidades que rodeiam as decisões políticas da gestão da coisa pública, entretanto, alguns caminhos já poderiam ter sido explorados, o que não aconteceu, não está acontecendo e dificilmente acontecerá..., seja qual for a situação ou o Estado.
Enquanto alguns governos ficarem a olhar para a Europa e para os Estados Unidos, como quem olha o doce preso dentro da vitrina, acabaremos por nos esquecer de nós mesmos.